VOYEURISMOS, INDISCRIÇÕES E DESCRIÇÕES
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janeiro 01, 2015


NCidade nova, novo prédio, direi eu novo homem de mim. Embora esta seja uma afirmação que não é de todo verdadeira: Os anos passaram-se e carregaram-me nos ombros e nos passos o peso de conhecer melhor os caminhos da vida, os cabelos começaram a branquear aqui e ali e das lições aprendidas tomei as precauções para não voltar a caír nos mesmos erros.
Sim, porque velhos hábitos nunca se perdem.
Resisti quanto consegui, quanto a minha natureza impôs, mas de facto e realmente, nunca fiz mal a ninguém, nunca cometi nenhum crime, nem sequer sou um psicopata que se põe a espiar os outros e os persegue.
Sempre o disse e aqui reafirmo: Sou um estudioso da condição humana.
Não perturbo o seu habitat, nem o condiciono nem influencio, não me envolvo, não participo nem pretendo alterar o curso dos demais, apenas assisto. 
Há anos atrás aquele grito alterou o curso da minha vida. Não o contrário.
Agora é o tempo do regresso, mas também de pacificamente eu viver a minha rotina sem incomodar e sem ser perturbado.
Já disse. Assistindo e contando o que vejo da minha janela para o prédio da frente.
 

julho 28, 2009

NTudo plácido na noite escura.
Esperei. Em vão, nada de novo, nem luzes, nem imagens.
Deitei-me, devo ter adormecido quase de seguida.
Foi quando me senti sacudido por um grito horrendo que rasgou a tranquilidade dos que dormem, ou pelo menos o deveríam fazer a estas horas.
Ainda arrepiado saltei da cama e despojado de todo e qualquer cuidado abri a janela e procurei a origem de tão lancinante som.
Não fui só eu que o escutei, várias cabeças no prédio da frente espreitavam, mas para o meu prédio, na mesma busca que me tinha acordado de forma tão sobressaltada.
Aquele foi um grito de terror.

julho 26, 2009

NNoite escura como breu (continuam sem vir trocar a lampada do candeeiro lá embaixo na rua)
Tentava eu a todo custo vislumbrar um fio de luz através das persianas da casa da solitária, aperceber-me de qualquer movimento que fosse. Os olhos doíam-me de tanta insistência.
De repente, claridade ao lado da janela da loura, depois na outra e depois a repetição da cena selvática da mulher a ser agredida.
Arrepiei-me. Em simultâneo senti uma corrente subir-me pela espinha, creio que senti asco e ódio ou qualquer coisa muito parecida.
Normalmente não colo as minhas emoções a quem vejo, quer dizer, sinto se estão felizes e fico bem, vejo que estão tristes e torno-me nostálgico, mas nada para além disto, tudo muito ténue. Desenvolvi mecanismos de defesa sobre as emoções dos outros, é também uma forma de me defender e não extremar o que de um hobby passaría a ser uma loucura. Vejo-os mas não posso viver por eles, nem sentir com eles, não posso ser o pára-raios das suas vidas.
Mas a barbárie da agressão, seja a que nível for, é um estádio que me extravaza e descontrola.
Não posso, não devo, envolver-me na vida dos que assisto.
Mais uma vez, o homem reformado de camisola de cavas veio à janela, olhou ao alto.
Pouco depois, chegou a policia.
Um déjà vu que me parece, tornou-se quase banal na vida deste prédio em frente aos meus olhos.
Não sei que medidas a autoridade tomou, não consegui ver; Mas estiveram pouco tempo, o carro arrancou uma meia-hora após terem chegado.
A luz permaneceu acesa naquela janela até raiar o dia e alguém a desligar.
Estou cansado.
Mais pela impotência dos meus actos do que ter estado toda a noite a pé.

julho 24, 2009

NNada. Fiquei a saber tanto quanto sabía.
Como não posso fazer perguntas tenho que me limitar a escutar eventuais comentários que possam surgir sobre a minha solitária.
Pois é... Passado algum tempo adquire-se o direito de chamar os observados de nossos, já fazem parte da vida de quem os vê, os meus vizinhos deixem de ser os habitantes do prédio da frente, são os meus solitários, os meus velhotes, a minha estudante.
Mas da pesquisa que fiz não trouxe nada para mim, para os meus.
Apanhei de novo a loura espampanante na padaria, os beijinhos repenicados, o mesmo diálogo trocado com a padeira sobre o Sr.Doutor. Fiquei a saber que o cantor de ópera só regressa daqui a um mês ou mais e sai logo outra vez, pelo que a partir deste momento terei que fazer constar a loura dos seios opulentos como pecúlio dos meus olhos.
Não é uma mulher interessante. Do ponto de vista do percurso comum de um voyeur, digo. É muito artificial, muito ensaiada, parece como o real proprietário do imóvel onde está instalada, que estudou muito bem o guião.
Ah! Da solitária não trouxe novas, mas fiquei a saber que não há qualquer relação de parentesco entre a loura e o cantor. Apenas amigos, como ela referiu muuuuuuito bons amiiiiigos!

julho 22, 2009

NOs cortinados não voltaram a abrir-se nem o gato regressou ao seu sitio para tomar o sol da manhã.
Está tudo tão imóvel que quase dá medo.
Ou serei eu que tenho medo de que esta mulher tenha repetido o mesmo desvario e desta feita levou o pobre do gato até ao seu inferno privado. Ou não foi nada disto e estou somente a deixar-me levar pelo correr da imaginação, que diga-se, é veloz.
É certo que um dos predicados para esta ocupação é a recolha de factos, o que se vê é a minha verdade, nada mais lhe devo acrescentar; mas sem a imaginação a fluír como podería eu apimentar o que não vejo e até mesmo, concluír sobre os tais factos?
São dois lados da mesma moeda, absolutamente necessários para esta actividade.
Se até amanhã os cortinados não se descerrarem, vou fazer pesquisa no campo. Por outras palavras: Vou ao café, à padaria ouvir o que se comenta. Talvez saiba alguma coisa.

julho 20, 2009

NA solitária tem estado à janela, cabeça pendurada para baixo a ver quem passa.
Não estou muito certo de que veja efectivamente, passa a mão pelo dorso do gato que se arqueia todo e lhe roça a cabeça no queixo, no ombro, mas não responde aos afectos do felino, é um gesto maquinal sem emoção.
Apetecía-me gritar-lhe daqui, acenar-lhe, dizer que a compreendo e que não está sózinha, que eu sei da existência dela e que nada vale a pena para que cometa mais algum disparate.
Não digo nada, esse é um dos meus principios, não me envolver nem fazer parte da vida dos que observo, não tenho nem posso que alterar a realidade deles nem mudar-lhes o curso de vida. Por vezes custa-me, fico a pensar se tivesse intervido talvez o desenrolar da acção fosse mais favorável, mesmo que me custasse a minha posição de encoberto espreitador.
A mulher agora esticou-se toda para o lado de fora... Por favor, não saltes, não te atires!!!
Estou nervoso, começo a suar.
O gato desapareceu. Ela meteu-se para dentro. Corre os cortinados.
Que será que se passa dentro daquela casa, dentro daquela cabeça que parece tão perdida?

julho 18, 2009

NO casal com o miúdo da pistola (que já não tem pistola) voltou.
Vinham mais carregados de coisas do que quando partiram. É fácil chegar à conclusão que estiveram na provincia. O carro estacionado de bagageira aberta mais parece um lugar de fruta e legumes.
Depois do homem acartar com tudo para dentro do prédio, foi a vez da mulher, de costas vergadas para trás entrar com a criança ao colo, que dormía sobre o seu ombro.
Fixo a minha atenção no andar, daqui a minutos os estores vão subir, provavelmente as janelas serão abertas para arejar a casa.
Na mouche!
A mulher corre os cortinados para os lados, escancara as vidraças, examina o lixo acumulado no parapeito, espreita o passeio lá embaixo.
Depois começo a vê-la passar rápido, uma marcha contínua de lá para cá e de cá para lá. Anda de certeza a arrumar as coisas que trouxeram, a desemalar, separar roupas, frutas, legumes.
Dele, do marido, nem sombra.
E o miúdo, para não estar à janela a disparar com o seu indicador pequenino e rechonchudo, continua sem dúvida, a dormir o sono dos justos.

julho 16, 2009

NA loura cumpre o ritual do cigarro já altas horas da noite. Cumpre o ritual de se acariciar nos seios enquanto fuma o cigarro.
Depois de a ter visto tão próxima de mim na padaria, perdi um bocado do interesse por ela. Para além de se ter revelado o mistério sobre o cantor de ópera, esta loura é figura passageira. Pelo que entendi há-de partir quando o dono do apartamento chegar.
E depois... A verdade é que o encanto de observar a vida dos outros através das janelas está intimamente ligado às fantasias que fabrico para cada um deles, enquanto não tenho a exactidão sobre o que fazem, o que pensam, como reagem. Depois que muito da realidade me é facultada através de informações obtidas para fora da visão que tenho, o encanto do voyeurismo dilui-se aos poucos, lentamente, até desaparecer por completo o meu interesse.
Podem achar que é uma contradição.
Para quê gastar horas e horas da minha vida se não fico a saber nada em concreto?
Por isso mesmo.
De que serve pôr a imaginação a funcionar, alertar os mecanismos da mente se tudo chega sem esforço, cru, real, exposto?
O voyeur não vive do exibicionista, num primeiro tempo, o que parecería uma relação ideal; Tal como o masoquista não encontra o prazer pleno nas mãos do sado.
Eu serei uma mistura destes dois tipos: O meu extase é não saber, o meu orgasmo a dedução.

julho 14, 2009

NMistério resolvido.
Já sei o que é que o homem que fala sózinho faz.
Mas tenho aqui que confessar que não o descobri através da minha dedução. Não. Foi de maneira bem mais prosaica e que até acaba por retirar um pedacinho do brilho que sinto quando observo as janelas e aos poucos, lá vou tirando as minhas conclusões.
Desta vez foi diferente: A solução apareceu sem dúvidas, sem suspeitas.
Estava eu na padaria quando a loura entrou.
Fiquei imediatamente alerta.
Engraçado como a distância de uma janela para outra coloca atributos onde não existem. É uma falsa loura, carregada de maquilhagem e já não é nada nova. Os seios são reconstruídos, disso não tenho duvida alguma, houve ali mão de cirurgião plástico!
A loura é conhecida cá na rua. A senhora da padaria fez-lhe uma grande recepção, dois beijos. Depois a constatação: A loura está em casa do outro porque o outro - o Dr. como lhe chamou a padeira - está em digressão, e na sua ausência a loura aparece. Só não percebi muito bem qual o parentesco.
Mas finalmente estão explicadas as conversas solitárias de lá para cá: O homem é cantor de ópera! E o que eu vejo da minha janela, com aqueles gestos todos mais não é do que o Dr. Fala-Sózinho a ensaiar!
Pois é. As janelas por vezes também conseguem ser uma bela decepção.
Estava eu já a imaginar um enredo tremendo e afinal...

julho 12, 2009

NA loura conforme assomou assim desapareceu.
Mas os estores desde esse dia que estão recolhidos e a janela aberta.
À noite e com a luz acesa, já lhe vi a silhueta passar para cá e para lá, nota-se uma cintura fina, um busto proeminente (e de que maneira!).
Não saiu, estive atento à porta do prédio e só a estudante se enfiou no carro do tal namorado que sai sempre em grande estilo.
A loura esteve até bem tarde na sala, tinha a televisão ligada, dava para se ver aqueles clarões que os aparelhos emitem conforme mudam a imagem.
Por volta das três da manhã, a luz apagou-se, ficou tudo escuro. Pensei em recolher-me, por ali nada mais havía para observar.
Foi nessa altura que me apercebi de uma particula minuscula incandescente, umas vezes mais viva outras nem tanto.
A loura fumava.
Depois dos meus olhos já se terem habituado ao escuro da noite (não havía luar e algum engraçadinho atirou uma pedrada ao candeeiro da rua e ninguém da Camara veio substituír, apesar de eu já ter ligado duas vezes), reparei que a loura estava em camisa de noite, um grande decote, uns grandes atributos. Mas o extraordinário, era que a loura com a mão por dentro do decote não parava de se mexer, de um seio para o outro, depois por cima da camisa de noite, de novo por dentro e assim esteve até o carro do namorado da estudante chegar com uma bruta travagem e a rapariga entrar no prédio e a bater a porta.
A loura recolheu-se e eu tive grandes dificuldades em adormecer.

julho 10, 2009

NO homem que fala sózinho saíu bem cedo do prédio a arrastar uma enorme mala vermelha de viagem.
Pouco depois chegou um táxi. O motorista guardou-lhe a mala na bagageira e partiram.
Olhei para os estores: Tudo corrido. Pelo que concluí que efectivamente mora sózinho e deve ter uma paranóia qualquer, ninguém fala sózinho por tanto tempo e tão constantemente.
Embora não seja condição para se ser um criminoso, fico sempre a achar que este tipo de pessoas tem uma apetência para fazer mal, o que é uma ideia completamente errada.
Muitos dos que connosco se cruzam na vida e habitam no mesmo edificio que nós, aparentemente de aspecto normal e trato dócil, são exactamente os mesmos que cometem os crimes mais horrendos. Ninguém, mas ninguém, tem um letreiro a avisar que é um facínora e não é de todo o aspecto facial, o denominador comum do que atenta a vida de terceiros.
Estava eu nestas considerações quando os estores se começaram a erguer, lentamente, aos puxões.
Fiquei surpreso. Será que tinha voltado?
Em frente, uma mulher louríssima apareceu diante dos meus olhos.
Mas o que é isto?
Sai um maluco que fala sózinho e entra uma beldade destas?
Isto promete...

julho 08, 2009

NHá dias assim.
Em que tudo parece desabitado. Ou melhor, nada de novo se avista, tudo na normalidade da rotina, o que me aborrece claro está.
O velhote continua a pendurar a gaiola do canário e a cuspir. Sempre na indumentária que lhe exibe as carnes já flácidas dos braços, a penugem branca no peito.
A mulher sózinha parece perdida dentro da sua própria casa, é nitido o cansaço, o que vejo do seu corpo a movimentar-se de lá para cá são sinais de desalento. É tudo uma questão de tempo até ao ponto de ruptura decisiva.
O miúdo da pistola que já não tem pistola foi-se. Estamos em tempo de férias, devem ter abalado.
A estudante mantém o seu relacionamento com o namorado, sempre às pressas, ficam-se pela sala, comem-se literalmente, ele sai e só depois é que ela corre os cortinados. Começo a achar que ela faz de propósito, talvez a incentive suspeitar que alguém os possa estar a ver naquelas intimidades... Ou não, são apenas conjecturas minhas. O curioso é que ela vivendo sózinha, havendo pois, as condições perfeitas para passarem a noite juntos ele nunca tenha ficado para além do acto. Fazem-no e ela despede-se dele, costumo vê-lo saír lá embaixo na porta do prédio e arrancar com os pneus do carro a chiarem.
Do casal das agressões, nada: Os estores estão fechados desde a cena em que a policia chegou.
O homem que fala sózinho continua a falar sózinho e eu continuo a não perceber patavina do que ele diz ou a entender o que se passa.
Acho que tenho que me concentrar noutras janelas.
Há tanto por descobrir!

julho 06, 2009

NÉ impossível situar quando começou esta minha obssessão, ou tão pouco a causa que me impele a estar horas e horas da minha vida a olhar para as janelas dos outros.
Às vezes penso que tudo começou em criança, quando não quería comer e a minha mãe me sentava no parapeito a falar das casas defronte da nossa.
Era uma contadora de histórias.
Conseguía que eu comesse a papa toda e até rapasse o prato!
Mas o engraçado da questão é que em vez de pôr pessoas a morar por detrás daquelas janelas e varandas, a minha mãe habitava-as de dragões e de gigantes, cavaleiros de espada e até mesmo piratas que chegavam a casa carregadinhos de moedas e pedras preciosas.
Levava-me a imaginar o que eu não vía e por mais perguntas que eu lhe fizesse sobre como sabía ela daquelas coisas todas nunca me dava a evidência como resposta. Nem podía... Eram tudo estórias da carochinha mas que me fazíam comer, sonhar e fomentar a criatividade que há naturalmente numa criança.
Agora adulto, é certo que por vezes deixo-me levar, e a imaginação flui até aos enredos mais inverosímeis. Mas também é verdade que da observação muito se aprende e ficções aparte, aquilo que vejo, frequentemente, é superiormente incrível às narrativas da minha mãe.

julho 04, 2009

NAo lado do homem que fala sózinho reside outra familia: Um casal com dois filhos rapazes adolescentes.
Inicialmente não prestei grande atenção àquela janela, as movimentações nas outras chamaram-me particularmente por me parecerem mais agitadas e consequentemente com mais sumo.
Mas uma destas noites, já bem tarde, o sono não vinha, o calor no apartamento era muito e fui para a janela. Fiquei recostado no parapeito a tentar apanhar alguma brisa que refrescasse, mas por sinal, o calor era tanto dentro como fora de casa e ao fim de algum tempo, cansado, mole, resolvi recolher-me. Estava a compor os cortinados quando vi luz no prédio defronte.
Foi precisamente na janela desse casal dito normal que vi uma cena que me arrepiou.
O homem esbofeteava a esposa, ela de mãos erguidas a tentar proteger o rosto e os dois filhos a interporem-se. Havía empurrões e sacudidelas, gritos quase de certeza.
A mulher continuou a ser espancada apesar dos filhos tentarem defender a mãe.
Tentei apurar o ouvido, escutar algum grito, pensei em telefonar à Policia.
A luz da casa dos velhotes acendeu-se. O reformado apareceu à janela na sua costumada camisola de cavas, debruçou-se, olhou para cima.
Deduzi que a gritaría fosse tal que no prédio já tivessem dado pela coisa.
E assim deve ter sido. Pouco depois chegou a viatura das autoridades.
Fiquei perturbado, não preguei olho.

julho 02, 2009

NPodería começar por escrever o "Estranho caso do homem que falava sózinho" e a partir daqui desenrolar um policial.
O que vejo sería matéria mais que suficiente. Ou o que não vejo, pois falo do homem do 6ºdto que parece manter uma conversa com alguém que nunca vi.
Sería natural que havendo outra pessoa com ele, pelo menos já a tivesse visto de relance, mas nada, nem sombra, nem silhueta à noite com a luz acesa.
Estou a chegar à conclusão de que este bizarro ser conversa consigo mesmo. Outro solitário como a suicida. Quase me apetece gritar para que os dois se juntem...
Este vizinho da frente fala e em simultâneo desloca-se de um lado para o outro, pára, gesticula, por vezes parece irado, doutras num desespero que lhe deixa os ombros caídos como se carregasse um fardo imenso às costas. Também já o observei de braços abertos, parece fazer uma declaração. Será de amor? Mas a quem, a quem???
É nestes momentos que gostava de ser mosca e ouvir o que ele diz.
Por muito treino que eu tenha neste meu passatempo ainda não consegui atingir a perfeição de saber ler os lábios, ou pelo menos sempre, uma ou outra palavra consigo nitidamente ver e compreender o que dizem e me chega , tristemente, inaudível.
Às vezes está horas naquele diálogo até tarde da noite.
Parece cansar-se por fim.
Será que é por falar para as paredes?
Cada vez mais intrigante...

junho 30, 2009

NA solitária regressou a casa.
O gato, que durante estes dias não tenho avistado, retomou o seu lugar no parapeito para dormitar sob o sol que bate na janela.
A mulher voltou à sua rotina, anda de lá para casa, mas sem a energia que dantes lhe observei. Pára frequentes vezes, o cansaço é visivel. Leva as mãos ao rosto, tapa-o, esfrega-o, compõe o cabelo desmanchado do rabo-de-cavalo e lá segue. Parece que carrega uma cruz invisivel.
Não sai para trabalhar, suponho que se encontra de baixa médica.
Ninguém apareceu, também não a vi receber telefonema algum. Não deve ter familia chegada ou que resida perto, se a tiver. Amigos, amigas também não devem fazer parte da sua vida, ou o expectável sería eu vê-los na sala, darem-lhe um abraço. É só ela e o gato. Ela na sua vida, o gato na sua vida.
Causa-me uma tristeza profunda olhá-la, nem sei explicar bem porquê, acho que me apetecía bater-lhe à porta, dizer-lhe que eu sei que ela existe, eu vejo-a, eu percebo a sua solidão... Claro que nunca farei tal coisa, isto sou eu a falar com os meus botões.
Seja qual tenha sido a razão daquele malfadado telefonema que a levou a fazer o que fez, parece-me que a vida desta mulher sería argumento suficiente para cometer um desaire.
Pelo que observo, temo que vá tentar de novo.

junho 28, 2009

NMesmo que não me dedicasse a ver as vidas que se desenrolam no prédio da frente, a voz do garoto não me deixaría esquecer a existência de um outro edficio e a ver a causa de tanto alarido, não fosse algum incêndio a deflagrar perto de mim.
Sem pistola, faz do dedo indicador o cano que dispara ininterruptamente tiros, imita-os sem cansaço, e alterna o som de um revólver com um de metralhadora. Claro que ele não sabe que tipo de arma é, reproduz o que ouve e o que provavelmente assiste na televisão.
Mata tudo quanto mexe lá embaixo no passeio, de vez em quando esconde-se nos cortinados a defender-se de eventuais projectéis que imagina virem na sua direcção.
É uma carnificina.
A imaginação de uma criança é fabulosa. Sem limites. Põe o cenário, arranja os adereços e contrata uma equipa completa de representação, se bem que o papel principal é seu por direito.
Estava eu nestas cogitações quando o miúdo se calou. A arma ficou sem munições, a boca aberta a olhar na minha direcção.
Primeiro não me apercebi que me tivesse visto, achei que era para alguma coisa no meu prédio mas não para a minha janela.
Mas quando acenou constatei que tinha dado comigo! Ele há coisas?!
Disparou certeiro e atingiu-me no peito.
Meti-me para dentro. Algum cuidado é preciso.

junho 26, 2009

NA loucura da juventude não tem comparação com mais nenhum tipo de outras loucuras. Há uma ingenuidade misturada com esquecimento e distracção que abstraíndo o factor risco, lhe confere um brilho muito especial.
A estudante está acompanhada.
E a loucura é tanta que se esqueceu de fechar os estores ou pelo menos correr os cortinados. Permite desta forma que a sua intimidade seja compartilhada, o que passa a ser uma ménage à trois. Ou à quatre. Ou até quantos mais pares de olhos passem pela sua janela e fiquem a admirar o acto da cópula que se reproduz vigoroso e durável.
Devem ter entrado e a pressa era tanta que não passaram da sala. Preliminares para todos os gostos, oral requintado ainda meio-vestidos, meio-despidos e depois uma nova serventía à mesa de jantar. Realmente não está mal pensado, aquilo é lugar de refeição...
Já caíu o escuro da noite e acenderam um candeeiro, que pela luz que emite deve ser pequeno, mas que permite a quem se dedica às actividades do ver, a ter um panorama tão bem iluminado como um palco.
Estão naquilo desde o inicio da tarde. Não posso negar que me perturba, que me excita, tanto mais porque é a primeira vez que vejo a minha vizinha tal como veio ao mundo e as posições acrobáticas a que se entregam são as mais das vezes do imaginário do comum mortal do que propriamente praticadas com a regularidade com que se desejaría. Ainda mais para um homem só como eu.
Despedem-se. Longamente.
E agora que terminaram e ela está sózinha, deve ter lembrado do recato. Correu os cortinados e apagou a luz.

junho 24, 2009

NDela, da suicida, nem sombra. Que não tenho dúvidas algumas de que se tenha tratado de um rasgo de loucura a atentar contra si mesma.
Tudo devido ao telefonema, estou seguro dessa convicção.
Olhar as janelas que nos oferecem não é um simples movimento de manter os olhos abertos ou adivinhar como é que as pessoas se comportam na intimidade dos seus quartos. Para a maioria dos voyeurs sim, pasto verde para a imaginação masturbadora na procura (in)satisfeita do acto relacional e amoroso que acontece entre duas pessoas ditas normal.
Mas o que é normal?
É normal eu dispender todo o meu tempo livre a ver o tempo dos outros? A resposta imediata aponta para várias sessões de análise comportamental. Isto, se não me arranjarem um trinta e um que me ponha atrás das grades.
Tenho consciência que a minha obssessão é um hobby desviado. Mas não passa disso: passatempo.
Amanhã ou depois a mulher há-de voltar à sua casa.
Hei-de vê-la envergonhada, parada, perdida num mundo qualquer que procurou e não conseguiu atingir. Se tiver familiares e estes forçarem, regressará à sua casa para fazer uma mala pequena de roupa e parte, mais uma vez fazendo a vontade a terceiros.
E o gato?

junho 22, 2009

NNão fui só eu que me pendurei na janela para ver: Defronte e de várias janelas que eu ainda não me tinha apercebido surgiram mirones para ver o aparato da ambulância. E até do meu próprio prédio parecía que nascíam cabeças que se voltavam para os lados a comentar entre a vizinhança o que tinha acontecido.
Ouvi histórias mirabolantes, cada qual mais fantástica e (impossível) que a outra, numa disputa de conhecimentos sobre a vida alheia ao género de um argumento de Fellini.
Vi deitarem o corpo inerte da mulher na maca.
Senti um aperto no peito. Pode parecer estranho, mas à custa de observar quem está à minha frente, passa a haver uma identificação com as vidas de quem mora tão perto e tão longe de mim.
A mulher está viva. Creio que se assim não fosse sairía completamente tapada, o que não aconteceu.
Depois da ambulância ter partido ainda permaneceram à janela uns quantos que habitualmente restam para fazer o relatório final e claro, acrescentar uma boa dose de imaginação. Já vão ter tema na próxima reunião de condóminos.
O velhote que cospe hoje esteve acompanhado da esposa. Ela trouxe uma almofada tal como ele tem e ali ficaram os dois atentos ao espectáculo.
Daqui vejo o gato no parapeito. Que vai ser do pobre bicho?

junho 20, 2009

NA grande surpresa que avisto da minha janela é não haver alteração alguma ao que vi da última vez. A mulher está sentada no mesmo sitio, tem a cabeça um pouco pendente para a frente e talvez o tronco descaído de lado. O gato dormita no parapeito.
Alguma coisa está mal.
Ninguém fica tanto tempo na mesma posição... Acho que o que começa a tomar forma na minha cabeça não é nada auspicioso, temo que a mulher tenha cometido uma loucura.
O melhor é telefonar para o 112. Mesmo que isso me traga uma carga de trabalhos, como é que vou explicar que espio a janela da minha vizinha da frente? Vão chamar-me tarado, psicopata. Isto se me levarem a sério. Mas comparando essa trapalhada com o valor de uma vida... é nada.
Caramba!
Ainda agora para aqui me mudei e já ando numa roda viva!
Eu sabía que este prédio ía ser uma aventura, eu sabía!

junho 18, 2009

NO gato saltou para o parapeito para tomar sol.
A mulher está sentada exactamente no mesmo sitio de ontem, com a mesma roupa de ontem, o rabo-de-cavalo.
É estranho estar em casa à hora que o gato se acomoda no parapeito. Talvez esteja de férias, folga ou tenha telefonado a dizer que não vai trabalhar. Deve ter um emprego, acho, pela rotina das saídas e entradas. É ainda mais estranho uma mulher que regula a sua vida pela repetição dos mesmos gestos se encontrar tão quieta e sentada no mesmo sitio desde ontem. Deduzo que não se tenha levantado. Mas se o fez retomou exactamente a mesma posição em que a observei pela última vez.
Só não chora, não se torce.
Alguma coisa aconteceu para interromper o seu quotidiano e veio directamente do telefonema que recebeu.
O gato ainda não foi alimentado: Sobe e desce do parapeito, salta-lhe para o colo, depois regressa ao parapeito, vejo-lhe a pequena boca cor-de-rosa a abrir num miado.
No entanto, a mulher não parece ouvi-lo, permanece imóvel.
Uma janela que não posso perder. Mesmo em detrimento das outras.

junho 16, 2009

NA mulher do gato está a chorar, apercebo-me perfeitamente pelas convulsões do corpo, as mãos na cara, o tronco dobrado por cima das pernas.
Chegou à hora do costume, abriu as janelas como é seu hábito.
Passado uns instantes apareceu vestida com uma roupa mais confortável, o cabelo num rabo-de- cavalo. Segui os seus movimentos de um lado para o outro, infatigavelmente, acções de arrumar, limpar, a cesta da roupa entre braços, um vai-vém sem paragens.
Todos os dias cumpre esta rotina.
É uma perfeccionista.
Está na fase da idade indecifrável mas estou certo que já ultrapassou a casa dos trinta e está sózinha, talvez por escolha dela, talvez por escolha da vida. Tornou-se picuínhas, meticulosa, detalhista, cheia de tiques pequeninos que se força a respeitar ou sente que o dominio que tem sobre as coisas se descontrola. São coisas banais, mas são as que lhe enchem a vida.
Recebeu um telefonema, vi-a acercar-se dos cortinados com o telemóvel, a cabeça a abanar devagar num sentido negativo, depois o braço direito energicamente a firmar uma posição e a dar enfase ao que dizía.
Que será que conversa foi aquela que a deixou perturbada ao ponto de chorar?

junho 14, 2009

NO miúdo do 5º é um solitário, não tem ninguém com quem brincar e os pais não lhe prestam muita atenção.
Se o vigiassem teríam visto que o garoto já tem força para se impulsionar ficando com mais de metade do tronco para além do parapeito. O meu coração disparou. Uma criança não, por favor, não!
Depois as mãos escorregaram e deslizou para dentro. Mas como se sentiu grande e vitorioso com as suas capacidades cada vez se foi tornando mais afoito. Desatou a chamar por toda a gente que passava lá embaixo. As pessoas olham, algumas não ouvem, outras ignoram.
Foi tal a gritaría que a mãe apareceu por detrás dele, deu-lhe um safanão e de seguida arrancou-lhe a pistola de brincar e lançou-a à rua.
Ouvi um estrondo, abri a minha janela e lá estava: A pistola em cima do capot de um carro estacionado. Uma valente amolgadela.
A mãe do miúdo também espreitou, mas logo que viu o estrago trancou as janelas e correu os cortinados.
Dali já não tenho mais nada. E muito provavelmente nos dias seguintes também não.
Terei que me focar noutro andar, noutra janela.

junho 12, 2009

NO homem reformado do 4º andar costuma pendurar uma gaiola do lado de fora da casa. Tem um canário amarelo que trina que se desunha quando o sol incide. Fica ali pela manhã e antes do meio-dia recolhe-o.
O homem tem uma almofada que costuma pousar no parapeito e onde encosta os cotovelos. É normal, passa muito tempo à janela.
Tem um vicio que acho nojento, cospe frequentemente sem se importar se há gente no passeio. Ouço-o a puxar aquela coisa e a catapultá-la com força.
Fuma, tem ataques de tosse que antecedem a expulsão dos escarros, agarra-se com ambas mãos ao parapeito quando tem aqueles acessos. Da primeira vez que assisti, temi o pior: Pensei que ía asfixiar ou perder o equilibrio e caír. É uma altura muito considerável, o resultado sería funesto.
Em tempos idos aconteceu num dos meus momentos de observação ter assistido a um suicida. Fiquei paralisado.
Até tive pesadelos. É uma imagem que nunca esquecerei. E o som. O som do corpo a bater no asfalto e a cabeça a estourar como uma abóbora que se deixa caír dos braços.
Espero não voltar nunca mais a passar por essa experiência. Nunca mais.
Isto de ver os outros também tem o seu lado negro.

junho 10, 2009

NHoje cruzei-me no passeio com a jovem do edificio da frente, a estudante.
Confirma-se: Levava livros de estudo, em inglês. Resta saber se será um curso de linguas o que frequenta.
É bonita. Nada dessas belezas estonteantes, mas com um sorriso que parece aparecer a qualquer momento e com as faces coradas. Magrita. Imagino que a vida lhe seja uma correría e pelo exemplo do final de semana, não deve ter grandes preocupações com a alimentação e o sono. Há que viver, rápido e intensamente.
Esquece-se muitas vezes de correr os estores, fechar as cortinas. Com a luz acesa consigo ver tudo o que se passa na sua casa, nem se deve lembrar que a sua intimidade fica completamente exposta. Ainda não a vi nua, mas de lingerie sim, mais do que uma vez.
A questão é se mais alguém para além de mim também a vê.
Eu não faço nada para além de olhar, mas há por aí muita boa gente completamente tarada.
É que os criminosos são pessoas como eu, como ela, não trazem nenhum rótulo na testa a avisarem quem são, das suas intenções, dos seus desvios. E vivem em prédios como o meu, como o dela.

junho 08, 2009

NVim para este apartamento há uma semana, mas foi o tempo suficiente para me aperceber que o prédio defronte é um viveiro de emoções.
Há um casal de uma certa idade, provavelmente reformados, o homem passa bastante parte do dia à janela, de camisola de cavas. Isto no 4º andar.
Ao lado, uma mulher sózinha. Tem um gato que costuma tomar sol na parte da manhã, sempre colado aos vidros. Ela chega no final da tarde, escancara as janelas. Ainda não me apercebi que receba visitas, nem mesmo no fim de semana.
No 5º uma familia monoparental. O miúdo grita bastante da janela para quem passa na rua, dá tiros com uma pistola de plástico preta e imita o som dos disparos avisando quem morreu. Os pais chamam-lhe a atenção insistentemente, consigo ouvi-los da minha casa. A mulher parece ser uma pessoa nervosa. Arrasta o filho para dentro aos safanões.
Contígua é a janela de uma jovem, provavelmente trabalhadora-estudante. É uma agitação constante de gente a entrar e a saír e no fim de semana houve festa, dava para escutar a musica, as gargalhadas, os guinchos.
Mas quem me prendeu a atenção, definitivamente, foi o inquilino do andar acima, o 6ºdireito.
Homem estranho... Parece conversar com alguém mas nem vislumbre de quem seja.
Vou ter que estar atento.

junho 06, 2009

NNão se pense que este meu interesse pela vida alheia que se oferece à frente dos olhos, vai para além disso. Não pretendo nem nunca o fiz no passado, assim como não me revejo nessa posição no futuro, a interagir ou a tirar proveito de qualquer dos meus vizinhos.
É claro que também não pretendo incomodá-los. A minha presença é tão simplista que não uso de outras ferramentas que não sejam a excelente visão que possuo. E faço-o de vista desarmada, sem a recorrência maníaca de binóculos, máquinas fotográficas ou lentes que me aproximem a imagem.
Também não sou dos que me masturbo. Nem me babo, não mando recados e considero a chantagem de todo e qualquer nível ignóbil.
Há gente que se dedica a fazer colecções de caixas de fósforos, outros a construírem puzzles,uns quantos integram-se num grupo de caminheiros. O meu hobby é este: Observar.
Ver tudo o que se passa no prédio em frente ao meu.

junho 04, 2009

NAs casas para onde me mudo têm obrigatoriamente de ter na sua frente prédios. De preferência, edifícios com mais de quatro pisos. Menos disso, perde-se um pouco o interesse da actividade. De vivendas ou casas térreas não tenho o minimo apelo: São demasiado recatadas, difícil de descortinar seja o que for e os seus habitantes por serem em número reduzido tornam-se monótonos.
Também não gosto de arranha-céus. Demasiada altura traz a dispersão, complicado seguir um e outro, adivinhar relações entre os que entram e saiem.
Os apartamentos onde tenho morado ficam sensivelmente a meio do tamanho do prédio da frente, é um ponto estratégico. Mas também não descarto ficar um pouco mais acima, desde que se me afigure que o que está à minha frente se possa tornar interessante. Isso tem já a ver com o ambiente que rodeiam as casas, comércio, bairro familiar, garagens. Por aí.

junho 02, 2009

NSempre me fascinou a vida dos outros para lá das cortinas entreabertas ou do recorte dos corpos à noite, com a luz dos candeeiros a revelar-lhes os movimentos.
Imagine-se que da minha janela assisto a um filme contínuo onde os actores se sucedem sem o protagonismo estanque de uma película. Não há guião, é tudo de improviso.Tanto posso ver uma cena de sexo na sala como uma discussão na cozinha por o jantar se ter atrasado como uma traição prestes a ser descoberta quando o outro entra no prédio. Ele não sabe que está alguém a fazer a vez dele. Mas eu sei.
É esse o meu fascinio.E depois de alguns anos a mudar de casa e a observar os habitantes dos prédios que se alteiam na frente do meu, confesso, tornei-me obssessivo.